O Buddha ensinou que a principal condição para um casal viver junto e feliz, é partilharem os mesmos padrões de conduta, de crenças e de valores. Naturalmente, somos aconselhados a ponderar bem este ponto, de preferência antes e não depois de concordarmos juntar a nossa vida à do outro. Talvez possamos, através do amor, ser capazes de aceitar diferenças fundamentais de opinião e de conduta no nosso companheiro, mas não será fácil; e as coisas tornam-se mais complicadas quando as crianças entram na equação. O amor pode realmente ser parte de uma vida estável e emocionalmente preenchida, mas o seu alicerce tem de estar na moralidade, ser acompanhado pelo cultivo de virtudes inter- nas e acima de tudo governado pela sabedoria. De início, essa sabedoria é fundamentada numa reflexão dos princípios do Dhamma: todas as coisas são incertas e impermanentes. Todas as coisas impermanentes são por natureza imperfeitas. Quando queremos que algo impermanente seja permanente, e algo que é imperfeito seja perfeito, criamos sofrimento. Interesse em aprender a ver a vida de forma imparcial é vital se quisermos transcender as nossas tendências destrutivas. A tese fundamental dos ensinamentos do Buddha é que, enquanto os nossos corações e mentes estiverem infectados por qualidades negativas, jamais teremos a experiência da verdadeira felicidade. Mas ainda que o amor não possa substituir a necessidade do desenvolvimento espiritual, pode apoiá-lo. O que é necessário é que aprendamos o Dhamma e o apliquemos, para que assim nos possamos ajudar uns aos outros a superar as nossas negatividades.
Quando através da reflexão acerca dos prós e dos contras do amor, tivermos obtido a perspectiva correcta, devemos também tentar encorajar o mesmo hábito de visão desobstruída nas mentes dos nossos filhos, antes que eles sejam contaminados pelas imagens comerciais que os cercam por todo o lado. Vejam por exemplo o Dia de S. Valentim, uma tradição que não cresceu dentro dos nossos valores culturais, mas que foi criada por razões comerciais.
Considerem o que nos tenta este dia dizer acerca da relação entre o amor, sexo e consumismo material. Depois do último Dia de S. Valentim alguém disse-me que tinha visto um rapazinho de sete ou oito anos sair de um carro, levando consigo para a escola um lindo ramo de flores vermelhas. Eram um presente para a sua “namorada”. Esta imagem é engraçada ou alarmante? Para mim, os pais que compraram as flores para o seu filho não estavam a agir com sabedoria. Claro que é uma coisa sem importância, um gesto inocente, mas é através do acumular de tais coisas sem importância que são moldados os valores de uma criança. O desejo ou taṇhā o instigador das impurezas. Desejamos querer e não querer, ter e não ter, ser e não ser. Por vezes as impurezas ocorrem por causa do amor, outras vezes apesar do amor, mas sempre que ocorrem surge sofrimento. Geralmente não vemos estas impurezas ou obstáculos interiores como esta- dos negativos que devem ser abandonados. Ou se reconhecemos uma incontestável tendência negativa, muitas vezes justificamo-la como sendo parte de quem somos. Ou talvez nos sintamos simplesmente culpados e digamos a nós próprios que somos maus. É exatamente por razões como estas que as obstruções são tão resistentes. Mas quando estivermos conscientes do seu perigo, saberemos que para além do treino espiritual não existe outra forma de melhorarmos as coisas. Não temos escolha; temos de controlar o kamma negro.
O objectivo de uma prática correta é abrirmos os nossos olhos e ouvidos à natureza das nossas ações, palavras e pensamentos. Aprendermos a ver as coisas que contaminam as nossas vidas com impurezas, desenvolvermos a nossa conduta, as emoções e a qualidade de sabedoria simultaneamente, para podermos sair de todos os problemas. O sexo é uma parte natural do amor romântico. Nos ensinamentos budistas, o desejo ou a necessidade sexual é considerado uma obstrução ao desenvolvimento da paz interior e da sabedoria. Ao transcender a mente, o apego e o corpo, um ser iluminado transcende a sexualidade. Mas para um leigo, a gestão inteligente dos impulsos sexuais em vez de abstinência é o ponto de referência. O Buddha percebeu que poucas pessoas estão interessadas na libertação do desejo sexual e assim sublinhou uma conduta que não cause mal, nem ao próprio, nem aos outros. O terceiro dos cinco preceitos (sīla) para budistas leigos requer abdicar do adultério, da conduta sexual abusiva ou de coação. Esta contenção interior que o Buddha encorajou, evita que nos percamos no sexo, que nos tornemos seu escravo ou que o sexo se torne o foco principal da vida de casal.
A apetência sexual de cada casal pode variar em intensidade, e o seu papel na relação pode não ser o mesmo para ambas as partes. Ter sexo pode significar coisas diferentes para diferentes pessoas: umas podem vê-lo como a expressão suprema da intimidade, outras como algo adjacente e desnecessário para a mesma. O prazer que o sexo oferece pode ser aniquilado quando as pessoas se tornam exaustas por causa do “stress” ou do excesso de trabalho. O sexo pode facilmente tornar-se numa causa de discussão, frustração, desapontamento e aver- são. Além disso, um desejo sexual excessivo pode conduzir à infidelidade, destruindo a confiança e a paz do lar. Um casal que outrora se amou profundamente pode nunca mais querer ver a cara um do outro. O divórcio pode ser severo e muitas vezes é devastador a nível emocional. Se o casal tiver filhos, o divórcio pode certamente afetar-lhes, de forma adversa, a saúde mental e a felicidade, a longo prazo.
As impurezas têm a sua própria lógica. Aqueles que quebram o terceiro preceito (conduta sexual incorreta) normalmente têm razões que lhes parecem bastante convincentes. Os homens gostam de mencionar os seus instintos naturais como uma desculpa. Para as mulheres geralmente é o amor. Nenhuma das partes assume responsabilidades pelo seu próprio comportamento. Em vez disso, afirmam que foi o desejo do corpo ou o seu amor, em vez de serem eles próprios os responsáveis. Embora seja verdade que os seres humanos se confrontam regularmente com tentações físicas e emocionais, temos de ser claros de que a violação dos preceitos, ocorre única e exclusivamente pelo desejo de assim o fazer. Se a nossa moralidade só persiste na ausência das impurezas e obstáculos interiores, então não é moralidade. A essência da educação budista, em termos de conduta, é cultivar a intenção de abstinência, e isso é desenvolvido de forma mais crucial quando os desejos que queremos satisfazer estão presentes. Os preceitos foram concebidos para serem o limite que nos protege das consequências de ações menos saudáveis. Desenvolver a paciência, a moderação e usar os preceitos como alicerce para a plena atenção, é o caminho para permanecer seguro e evitar ações nocivas.
As relações estáveis, dentro ou fora do casamento, prosperam quando nos comprometemos com o nosso companheiro, a não procurar prazer sexual fora da relação. Tal compromisso requer que estejamos dispostos a sacrificar o prazer físico pelo bem da fidelidade, e assim podermos desfrutar da sensação de bem-estar que advém de ser um companheiro honesto e leal. É bom sentir orgulho e o respeito próprio que advém de sabermos governar as nossas ações de forma saudável. Para além disso, ao mantermos os preceitos e ao cuidarmos da qualidade das nossas ações, estamos a criar os alicerces para alcançarmos a alegria da concentração (samādhi), que é incomparavelmente superior ao prazer sexual.
Ainda que sejamos felizes no casamento, é pouco provável que estejamos completamente imunes aos encantos de alguns membros do sexo oposto. Ainda que não possamos prevenir que um sentimento súbito surja, podemos evitar fazer ou dizer alguma coisa que alimente tal sentimento. Podemos evitar envolver-nos em conversas particulares, telefonemas, e-mails, etc., com a pessoa que nos atrai. Podemos abster-nos de encorajar essa pessoa a pensar ou a fazer a coisa errada. Mais importante que tudo, podemos abster-nos de procurar prazer em tal sentimento ou de permitir que o prazer na nossa mente possa estimular as proliferações mentais. Consentir fantasias não é uma distração inocente; a imaginação pode plantar sementes na nossa mente que resultam num sufocante descontentamento e em ações imprudentes. Pessoas honestas e pacientes que se retraem de ações pouco sadias, que possuem um medo inteligente das consequências, veem o apego à sensualidade como um fogo que queima os seus corações. Aqueles que valorizam o que é correto podem conquistar os seus corações, se realmente o quiserem. Quando o sentimento passar, ganhamos o vislumbre de que por mais irresistível e convincente que o desejo tenha sido, é somente isso, um sentimento. Nem mais, nem menos. A questão das obstruções interiores tende a ser complexa. Homens de meia-idade com amantes mais novas, muitas vezes não estão somente a entregar-se à satisfação dos prazeres físicos do sexo, mas a reagirem ao medo quase inconsciente da morte. Na meia-idade, a deterioração do nosso corpo começa a manifestar-se e, com ela, a desconfortável realização de que a velhice e a morte são reais e vão mesmo acontecer. Para mim! Certamente! Este pensamento é terrível para a maior parte das pessoas, e aqueles que nunca examinaram as suas próprias mentes de forma sistemática, podem sentir uma repentina sensação de vazio e raiva. O sexo é a velha solução: “Ainda não estou acabado, nem pensar tal coisa. Sou viril, sou atraente. Sou importante para alguém. Como é que posso morrer?” “Muito facilmente”, seria a resposta budista, mas até as pessoas mais racionais são propensas a este mágico tipo de pensar. Os tempos de guerra revelam-nos provas concretas acerca da relação entre a preocupação com o sexo e o medo de morrer.
Os prazeres sensuais podem consolar-nos, podem esconder ou ajudar-nos a esquecer a realidade da vida por algum tempo, mas também nos prejudicam, enfraquecendo a resistência do coração e da mente. Quando nos habituamos a procurar este fácil e rápido escape para os problemas emocionais, a nossa faculdade de sabedoria começa a atrofiar. Por fim, na velhice, podemos deparar-nos com a possibilidade de não sermos fisicamente capazes de apreciar o mundo sensorial da mesma forma, mas não termos fontes alternativas de felicidade ou algo com significado. No Dhammapada, o Buddha descreveu uma pessoa nessa mesma condição como “uma velha garça que definha à beira de uma lagoa sem peixe.”
A garantia de segurança mais fiável contra as obstruções interiores é compreendermos as nossas emoções e saber como geri-las. A violação do preceito acerca da abstenção de conduta sexual incorreta tem muitas causas. Devemos procurar descobri-las e aprender a lidar com as mesmas com sabedoria. Temos de as perceber como a natureza condicionada da obsessão sexual, tal como o desejo de coisas novas para alegrar as nossas vidas rotineiras, a excitação de ter um segredo, o desejo de ser uma pessoa especial para alguém e o prazer de fazer aquilo que sabemos estar errado. Compreendendo quais as causas, tentamos abandoná-las. Em relação ao que ainda não podemos abdicar, temos de ser pacientemente comedidos.
O amor pode diminuir o nosso egoísmo. A felicidade daquele que amamos pode parecer mais importante ou pelo menos tão importante como a nossa. A mudança de perspectiva no afastamento do egocentrismo é algo bonito de se ver. Mas em última instância a proteção que o amor oferece contra o sofrimento é superficial, e se os consolos do amor nos fazem esquecer a nossa capacidade de atingirmos a libertação, então estaremos em perigo de desperdiçar este precioso nascimento humano.
As impurezas nas nossas mentes, que não são tratadas, estarão sempre prontas para criar miséria. Por exemplo, de início pode ser fácil perdoar e abrir mão de ressentimentos que temos em relação àqueles que amamos. Mas ao fim de um certo tempo, quando a familiaridade e complacência aumentam, mais prontamente mostramos emoções negativas. Reprimimos a nossa irritação para com os colegas de trabalho por medo de repercussões profissionais, depois levamos a persistente irritação para casa e despejamos o stress no nosso companheiro, tratando aqueles que amamos como se fossem um caixote de lixo emocional.
Tantas são as questões que podem criar dificuldades nas relações. Desacordos sobre as necessidades sensuais e sexuais são agravados por discussões causadas pelo orgulho e pontos de vista divergentes, sobre posição e responsabilidades, finanças, a forma de educar as crianças e onde e com quem passar os tempos livres. Podemos zangar-nos um com o outro precisamente porque nos amamos. Não podemos simplesmente encolher os ombros e seguir em frente. Então o que devemos fazer? Refletir com sensatez ajuda bastante. Podemos por exemplo considerar o nosso companheiro, como sendo um professor a quem devemos imensa gratidão. Podemos relembrar as coisas que aprendemos na relação. Até nos tempos difíceis, o nosso companheiro ajuda-nos a ver os nossos obstáculos interiores. E se não virmos estes obstáculos e essas impurezas, como poderemos alguma vez estar livres delas ? É realmente muito doloroso quando aquele que amamos nos questiona e nos causa irritação, mas se ele não puser em causa os nossos condicionalismos, podemos tornar-nos negligentes e ficarmos presos aos nossos pontos de vista deturpados, por muito mais tempo. Agradeçam-lhe por tal (pelo menos na vossa mente). Ainda que neste momento estejamos totalmente infelizes, podemos refletir que apenas nos envolvendo no cultivo espiritual, poderemos ter esperança de vir a estar livres do sofrimento mental que surge no decorrer de uma relação. Existem diferentes níveis de amor. O grau mais baixo é aquele que está dependente da outra pessoa nos dar aquilo que queremos. É um amor condicionado por recompensas tão grosseiras como receber da outra pessoa prazeres sexuais, aquisição de riquezas, posição profissional, reconhecimento social ou fama. Se o amor estiver dependente de tais coisas, é insustentável. De facto dificilmente merece o nome de amor, é mais como uma transação comercial.
Um nível um pouco mais refinado, em que condições são colocadas sobre o amor, é quando as mesmas são usadas como uma ferramenta para conseguirmos realizar a nossa vontade. Maridos, esposas, filhos, netos, ou até os pais, podem usar o amor como uma arma. Quando dizem algo como: “Se realmente me amas, faz isto por mim,” ou “Se não fazes isto, significa que não me amas.” Estão a praticar o que chamamos de chantagem emocional. Então o que fazer se nos depararmos com esta táctica? Um conselho sensato é tentarmos separar os assuntos: relembrarmo-nos que ainda os amamos, mas que amar e ser grato não é o mesmo que aceitar os desejos deles em todas as situações. Quando isto ficar claro, temos de nos preparar para resistir ao poder das lágrimas, ao poder de palavras ásperas, ao poder das caras zangadas, ao poder da súplica, e por aí fora. Por mais difícil que isto possa ser, vale a pena suportar. De outra forma, este padrão de manipulação pode tornar-se numa tradição familiar, tornando extremamente difícil diferenciar a confusão entre amor, necessidades, desejos, deveres e obrigações.
A ignorância (avijjā) significa não saber ou ter um entendimento incorreto. Falta-nos uma experiência mais precisa e imparcial da realidade da vida. Presumimos de forma incorreta que em última instância somos um “eu” (atta) que sente, pensa, está feliz ou infeliz, é permanente e independente, que dita e é dono da própria vida. A consequência desta visão das coisas, é um desejo desnecessário e interminável. Assim que formos iludidos pela ideia do “eu”, a nossa vida torna-se confinada a como conseguir ou não conseguir, ter ou não ter, ser ou não ser. Na frase “Eu amo-te,” a que se refere o “eu”? Onde está o verdadeiro “eu”? Este “eu” é hoje o mesmo que era ontem? E o “eu” de há um ano atrás, cinco anos atrás, dez anos atrás, vinte anos atrás? É a mesma pessoa? Não é bem a mesma pessoa, pois não? E também não é exatamente uma pessoa diferente. É isto que é tão confuso acerca de algo que à primeira vista parece ser a coisa mais óbvia e sólida da nossa vida. O Buddha disse que um “eu” permanente e verdadeiro não existe. Aquilo que momento a momento temos como experiência direta, são na verdade apegos ao corpo e a sentimentos, percepções, pensamentos e emoções, “minhas” e de “mim”, constantemente a surgirem e a desaparecerem. A situação é idêntica à de uma pessoa demente, que acredita ser um escravo, luta para fazer tudo o que lhe é possível para tornar o seu dono mais próspero e agradado, quando na realidade tal dono não existe. Porque é que queremos tanto? Porque é que estamos sempre tão agitados? Será porque procuramos proteger e nutrir este “eu” imaginário. Mas “eu” é um nome que atribuímos a uma corrente de fenômenos impermanente e instável. Tomar um processo natural como sendo uma coisa, um verbo como sendo um substantivo, é a causa raiz do nosso sofrimento.
A falta de um “eu” (anatta) é um conceito difícil de compreender pois vai contra a corrente do senso comum; deve no entanto ser compreendido por qualquer um que deseje deixar de sofrer. É por causa de falharmos em realizar a verdade de anatta que sentimentos de deficiência, de imperfeição, de solidão, formam o pano de fundo da vida humana. Tal falha é a razão do nosso desejo ardente pelo amor e a razão pela qual o nosso amor é propenso a impurezas. A ilusão de que existe um “eu” que é dono da nossa vida, que se sente em falta, ameaçado e isolado, faz com que lutemos pelo amor e que sentamos “eu tenho um problema,” quando de facto o problema está no próprio “eu”.
No mínimo, se tivermos a coragem de olhar para nós próprios e examinar a nossa solidão, os nossos medos, preocupações e diferentes tipos de sofrimento no nosso coração, os nossos desejos ardentes e expectativas sobre os outros diminuirão naturalmente. Começaremos a ver que essas coisas não são realidades últimas. São somente emoções que surgem naturalmente e desaparecem. As pessoas que são egoístas por causa da tenacidade com que se apegam à ideia do “eu” e do “meu”, e que persistem em alimentar estas ilusões, tornam-se cada vez mais egoístas. Têm a tendência de pensar que são mais inteligentes que os outros, quando de facto a sua arrogância alberga uma profunda ignorância. Quanto mais se dedicam ao seu ganho pessoal, mais encontram solidão, agressão, ansiedade, orgulho, desconfiança e medo generalizado.
O desejo de que alguém preencha a parte que falta na nossa vida, coloca condições limitadoras na nossa relação. Querer algo de alguém e acreditar que se não o conseguir vai-nos causar imensa dor, conduz inevitavelmente ao medo e à tensão. Se obtivermos o que queremos, o medo da separação torna -se intenso. Se colocarmos a nossa esperança de felicidade e segurança numa pessoa em particular, sofremos com a imprevisibilidade dessa pessoa e com a inevitabilidade da separação que nos aguarda no futuro. Quem não se conhece a si próprio e não aceita a realidade da natureza sofrerá bastante. Amar demais e querer aquilo que os outros não nos podem dar é doloroso.
Refletir nas deficiências do amor, provavelmente não fará com que aqueles que se amam verdadeiramente se amem menos ou se deixem de amar, mas permite que o amor seja governado por sensatez. A consciência de que o sofrimento é a sombra do amor, ajuda-nos a aceitar de uma forma mais imediata a natureza da vida e a não ter a expectativa de que o amor nos dê aquilo que não pode dar. Quando vermos o amor, não só como uma desejável parte da vida, mas também como algo incapaz de nos dar verdadeira e permanente felicidade, a importância da prática espiritual torna-se clara. A prática do Dhamma treina-nos para sermos inteligentes, inteligentes ao prevenir que contaminações que ainda não sugiram não venham a surgir, inteligentes ao lidar com as impurezas que já surgiram, inteligentes ao criar qualidades benéficas que ainda não existem, inteligentes ao manter e aperfeiçoar as qualidades benéficas que já foram desenvolvidas. Por esta razão a prática do Dhamma não é restrita a certas horas e a certos locais. De uma forma ou de outra, ela é sempre possível, aqui e agora.
Os que não treinaram o Dhamma mais facilmente serão vítimas de mal entendidos e confusões e de entrarem em con- tradição pessoal com a vida, especialmente sobre as duas coisas que deveriam ser os temas mais importantes dos nossos estudos: felicidade e sofrimento. Em geral os nossos sistemas de educação oferecem pouca ajuda. Enfatizando o tipo de conhecimento que pode ser testado e focando-se primariamente em preparar crianças para carreiras futuras, negligenciam o desenvolvimento da sensatez. Como resultado, temos uma epidemia de ignorância e confusão sobre como viver uma vida sã. Por mais superiormente instruídos que possamos ser, se não formos capazes de detectar a origem e a cessação de estados mentais, acabaremos por sujeitar-nos a sofrimento desnecessário. Acabaremos por perder certos tipos de felicidade que são o direito de nascimento dos que têm kamma suficientemente bom para terem nascido como seres humanos.
O Buddha queria que percebêssemos claramente que todas as coisas na vida são impermanentes e incertas, que prosperam e decaem de acordo com causas e condições. Coisas saudáveis podem deteriorar-se e coisas não saudáveis podem ser purificadas. É sensato proteger-nos contra aquilo que poderá afetar uma relação saudável ou se tal relação já está em declínio, prontamente deter a causa de tal deterioração. É importante desenvolvermo-nos até ao ponto de termos a capacidade de fazer isto. Temos de abrir os nossos olhos e ouvidos à realidade da natureza, aceitar a impermanência e a incerteza e conduzir o nosso amor cada vez mais no caminho do amor incondicional (metta).
Resumindo, viver sabiamente neste mundo envolve aprender e perceber a natureza do amor e refletir acerca das suas vantagens e desvantagens. O Dhamma ensina-nos a abandonar desejos que são a causa do sofrimento e do mal que acompanha o amor mundano. Devemos ter em mente sermos alguém que nem sofra com o amor, nem cause sofrimento aos outros, devido “ao amor”. Devemos purificar o nosso amor para que ele possua cada vez mais as qualidades de metta. Aprender através da experiência conduz-nos à verdade das coisas. Quando vemos as coisas tal como são, o amor alimentado pela ignorância e pelo desejo diminuirá ou desaparecerá por completo. O amor com base na sabedoria e na compreensão, bem como as aspirações que daí surgirem, irão persistir e amadurecer. O Buddha não ensinou usando o recurso da ameaça do inferno ou da promessa do céu. Em vez disso, ele anunciou que era “um conhecedor de todos os mundos” (lokavidū), que tinha claramente visto a forma como as coisas são e que as iria explicar. Ele disse que o Dhamma era verificável e encorajou as pessoas a não acreditarem cegamente nele, mas a pô-lo à prova. Ele disse, que temos de analisar e considerar por nós próprios se aquilo que ele ensinou é ou não verdade. Pessoalmente, gostei imenso deste estilo de ensinar desde o meu primeiríssimo contato com o mesmo. Vindo de uma formação secular, achei refrescante descobrir uma religião que não considera que ter dúvidas acerca dos ensinamentos seja um pecado ou um insulto ao professor. Fiquei feliz por descobrir que poderia investigar o Budismo sem sentir a necessidade de anestesiar o meu intelecto. E no entanto ele era muito mais do que uma profunda filosofia. Assim, a questão do amor é um assunto sujeito a investigação. Não se espera que adotemos uma especial atitude budista em relação ao amor, mas que tomemos um interesse profundo em olhar para ele da forma mais sensata. O Buddha queria que aprendêssemos cuidadosamente o que o amor realmente é, pois todas as coisas mundanas, estão sempre prontas a trazer sofrimento aos que não possuem sabedoria, e sempre prontas a conduzir à felicidade os que a possuem.
Com base nas minhas observações, diria que os problemas dos casais não provêm tanto da falta de amor mas mais da falta de amizade entre os membros do casal. Amor e amizade sensata não se dão necessariamente um com o outro. Para ser bom amigo de alguém que amamos, temos de aprender a ter virtude, a desenvolver a generosidade, a moralidade e a meditação, o mais possível, tentando perceber-nos a nós e ao outro; e ajudá-lo a compreender-se a si próprio e a nós. Devemos continuar a desenvolver boas formas de comunicação. Deixem-me sublinhar que a boa comunicação não surge por si própria com o amor, como “software” grátis num computador novo. É uma arte a ser apurada. Não podemos esperar comunicar bem, simplesmente porque temos bocas e ouvidos que funcionam. Se num casal cada um dos elementos tiver diferentes pontos de vista e quiser ser o protagonista, recusando-se a desistir até vencer a batalha, estará a violar os princípios do Dhamma. Um dos lados pode vencer uma pequena guerra, mas ambas as partes perderão a paz. A melhor atitude é perceberem que estão do mesmo lado: são uma equipa com um problema para resolverem juntos. Têm de se ouvir e falar devidamente para serem bem sucedidos.
Quando duas pessoas conduzem a sua vida com refúgio no Buddhadhamma e tentam ser bons amigos (kalyāṇamitta) um para o outro, têm a possibilidade de usufruir de uma felici- dade duradoura na família. Cultivando juntos o Dhamma, fará com que a relação do casal absorva cada vez mais princípios do Dhamma, tornando-se cada vez menos num obstáculo para alcançar a libertação espiritual. Casais que são amigos, confiam um no outro, e oferecem encorajamento em momentos difíceis e quando o seu companheiro se sente desanimado. Eles sabem ouvir e falar entre si e agir como um conselheiro calmo e prudente. Eles compreendem e perdoam transgressões aceitando-se um ao outro como seres humanos não iluminados e com impurezas. Não albergam qualquer pensamento de vitória ou de tirar partido do outro. Em vez disso, têm a coragem de mencionar no lugar e na altura apropriados, com respeito e boas intenções, aquilo que é verdadeiramente precioso. Ao mesmo tempo, estão sempre prontos para ouvir sugestões, comentários e palavras de cautela, um do outro. Isto é no mínimo um ideal para o qual se devem encaminhar.
Deixem-me então resumir mais uma vez: o amor faz parte do mundo. Tem um lado claro e um lado escuro e uma área cinzenta. O Buddhadhamma ensina-nos a aprender acerca do amor para que possamos encontrar o caminho para minimizar a parte escura e cinzenta e maximizar a parte clara. Já nascemos com ignorância e desejos. O amor é uma parte da vida que está envolta em impurezas. Alguns tipos de amor são como um veneno e crescem diretamente da ignorância e do desejo. Alguns tipos de amor são controlados pela ignorância e pelo desejo, mas podemos libertar-nos deles da mesma forma como podemos remover uma espinha de peixe da nossa garganta. Alguns tipos de amor só contêm um pouco de ignorância e de desejo e podem ser usados como combustível para desenvolver uma vida sadia. A promessa de se ser bons amigos (kalyāṇamitta) é um ideal de vida importante para tal desenvolvimento. Além disso temos de aprender a compreender a natureza do amor e tornar o amor incondicional (metta) um objectivo claro e parte do nosso modo de vida.
Na prática do Dhamma, a sabedoria atua como um antídoto direto para a ignorância, examinando a realidade da vida e do mundo com uma mente estável, calma, imparcial e concentrada no presente. O antídoto direto para o desejo é o sistemático e integrado desenvolvimento de estados mentais sadios. No caso do amor, a virtude mais proeminente é o amor incondicional e o esforço para se ser um bom amigo. Aprendermos a praticar moderação, a registar as nossas emoções e a abrir mão: estas são peças centrais do lado da prática onde a negação é crucial. Mas ao mesmo tempo necessitamos de um ideal positivo para cultivar. Esse ideal positivo é fornecido pelo amor puro chamado metta.
- Ser incondicional.
- Não ter limites; o desejo para que todos os seres vivos possam estar bem.
- Não causar sofrimento.
- Ser governado pela sabedoria e equanimidade.
É um milagre o fato de este amor existir e de todo e qualquer ser humano ter a capacidade de o desenvolver. Quando vemos nas notícias a crueldade e falta de atenção de outros seres humanos, os sentimentos de depressão e desespero que possam surgir podem ser afastados refletindo na nossa capacidade inata de sentir metta. É verdade que os seres humanos podem ser criaturas terríveis, mas também é verdade que têm dentro de si a possibilidade de se tornarem melhores.
Dada a natureza de metta delineada acima, praticar de forma a educarmos o nosso amor significa:
- Tornar nosso amor menos condicional.
- Torná-lo menos discriminatório e menos preferencial.
- Reduzir a sua capacidade de nos causar sofrimento.
- Desenvolver sabedoria e equanimidade.
Metta é um amor puro pois está livre do apego à ideia do eu (atta). Com metta nada mais queremos do que a felicidade dos seres vivos. Metta é um amor que flui naturalmente de uma mente realizada, em vez de uma agitação numa mente sem refúgio. Metta não deseja nada em retorno, nem sequer amor ou entendimento. O Buddha disse que em todo o mundo, o amor incondicional que uma mãe sente pelo seu filho é o mais próximo deste tipo de amor. Mas para aquele que desenvolve metta, esse amor não é restrito ao seu filho, mas sentido por tudo quanto vive. Na nossa prática, quando já tivermos reflectido acerca das desvantagens do amor condicional e da nobreza e beleza da mente incondicional, teremos coragem e fé no valor do nosso próprio desenvolvimento. Podemos começar a examinar o amor que temos por aqueles que nos são mais próximos, de forma a descobrirmos quais as condições que lhes impomos, procurando reduzi-las. Reflectimos sobre a nossa intenção de dar e sobre os factores exteriores que queremos e que sentimos que necessitamos. Ao reduzirmos as nossas expectativas e exigências dos outros, quando eles dizem e fazem algo que nos deixa felizes, sentimos que essas experiências têm um sabor particularmente maravilhoso. Talvez o aspecto de metta mais difícil de desenvolver para os budistas leigos seja a universalidade. Por definição, ao amor pessoal falta-lhe universalidade. É interligado por falta de imparcialidade e restrições; e apesar de estas poderem vir a ser bastante reduzidas é pouco provável que desapareçam completamente. Uma das razões porque os monásticos budistas praticam o celibato é impedir que o amor pessoal obstrua o fluir de metta nos seus corações. Para os leigos, embora expandir o amor seja difícil, um melhoramento progressivo é possível. Temos de ser vigilantes e, com toda a atenção, supervisionar o coração de forma a não dar demasiada atenção a pensamentos acerca de nós e dos outros, de sermos ou não aceites, de longe e de perto. Devemos refletir no facto de que todos os seres humanos são nossos companheiros no ciclo do nascimento, envelhecimento, doença e morte. Devemos tentar tratar todos os outros com igual respeito, consideração e boa vontade. Esta é outra forma de purificar o amor.
O amor que nasce da ignorância e contém impurezas, conduz a uma vida meio amarga, em que o prazer e a dor parecem estar irremediavelmente emaranhados. Em contraste, metta surge do abandonar das preocupações para com o ego e da perseverança em abandonar impurezas. Metta é uma parte do Óctuplo Caminho que conduz à libertação. É uma virtude sempre presente na mente de seres iluminados. Para seguirmos os seus passos, devemos procurar reconhecer e abandonar o ciúme, a inveja, a vingança e as outras obstruções que tornam o nosso amor num pesado fardo.
Embora queiramos que os outros sejam felizes, por vezes não os podemos ajudar; eles têm o seu próprio kamma para ser trabalhado. Nesse caso, se não refletirmos na lei do kamma podemos sofrer bastante. Aqui a tarefa da sensatez é de constantemente nos lembrarmos da forma como as coisas são, para que não nos deixemos levar pela bondade. Equanimidade, o estado neutro, imparcial, que surge da sensata sabedoria, é um lugar para descansarmos a mente quando não conseguimos ajudar aqueles que amamos a alcançar a felicidade. Aprendemos a fazer aquilo que podemos e depois “largamos”. Adicionalmente, a sabedoria também tem um papel importante em criar meios eficazes de ajudar os outros a serem felizes. As boas intenções são geralmente por si próprias insuficientes. Temos de estar atentos a fatores tais como a personalidade daquele que estamos a tentar ajudar, a altura e o lugar apropriados e a forma mais eficaz de comunicar. Outra função da sabedoria e da equanimidade é a de impedir que, ainda que com boas intenções, metta nos leve a agir de forma não ética. O fim não justifica os meios. Se ajudarmos alguém a fugir às consequências das suas ações negativas, sem dúvida que eles ficarão felizes. Mas a longo prazo, talvez estejamos a causar-lhes mal por lhes obstruirmos o sentido de responsabilidade e de renúncia. Ao ajudarmos alguém por bondade, podemos criar um mau exemplo para os outros. A sensata sabedoria é a nossa bússola em assuntos complexos. Temos pelo menos de nos lembrar, que o mau kamma é criado pela intenção específica de agir ou falar de forma incorrecta, ainda que a intenção original possa parecer de louvar, como por exemplo, quando mentimos com o intuito de ajudar alguém. Aquele que é capaz de oferecer regularmente um amor tão puro, é alguém interiormente feliz, que sabe como dar amor e como perdoar a si e aos outros. Oferecermos metta a nós próprios é uma fonte de felicidade interna significativa.
A forma de começar a fazê-lo é pensar acerca das virtudes que mais desejamos, tal como a serenidade e ausência de irritações, e como esses estados são impressionantes, belos e saudáveis. Depois, sussurrar ao coração: “Que eu seja feliz. Que eu esteja calmo e em paz. Que eu esteja livre de estados depressivos, de ansiedade e de preocupações. Que eu sinta alegria e contentamento”. Faça a experiência, procurando as palavras que melhor resultarem para si, as que lhe dão exultação ou calma interior. Ao dizer “Que eu possa” não é que estejamos a pedir isto a alguém. É mais uma afirmação para nós próprios acerca dos nossos objetivos espirituais. Para além de fortalecer a nossa determinação, estas palavras servem para nos lembrar se a forma como vivemos a nossa vida diária é compatível com as virtudes a que aspiramos. Desta forma essas palavras servem para relembrar e focar. Sempre que dizemos ou pensamos alguma coisa que está em conflito com estas virtudes, o relembrar destes bons votos que rotineiramente praticamos, para com nós próprios, oferece-nos uma pausa. Quando o ciúme e o desejo da vingança surgem, podemos perceber: “espera um minuto, aquilo em que agora estou a pensar está em directa oposição às minhas aspirações desta manhã”. O poder da aspiração aumenta a nossa consciência na vida diária.
Nos períodos de meditação, continuamos a oferecer-nos metta, até sentirmos uma sensação de satisfação e alegria. Então podemos dispensar as palavras e focarmo-nos no sentimento de metta como sendo o alicerce para samādhi e o vislumbre profundo sobre como as coisas são. Ou podemos decidir avançar a nossa prática de metta, oferecendo pensamentos de metta para outros. Aqui o factor importante é começar pelo que é fácil, por exemplo, desejar metta a alguém do mesmo sexo, que respeita- mos; depois aos familiares e amigos mais próximos; de seguida aos seres pelos quais não temos fortes sentimentos; por fim a pessoas de quem não gostamos ou que são nossos inimigos. Não se apressem. Sigam passo a passo, de acordo com o estado da vossa mente, e não com o ritmo do relógio ou do calendário.
Outro método de propagar metta é usar um mantra em conjugação com a respiração. Uma palavra monossilábica como “Paz” pode ser usada em cada inalação e em cada exalação, ou duas palavras como por exemplo “bem-estar”, na inalação (bem) e na exalação (estar). Recitando mentalmente a palavra ajuda a manter a atenção no seu significado. Inalando, pensem no bem-estar espalhando-se por todo o vosso corpo e mente. Exalando, pensem no bem-estar a estender-se a todas as coisas vivas, vejam-se como uma luz a emanar claridade em todas as direções.
Por fim, que possamos todos aprender e compreender o amor: Que tipo de amor é obstrutivo? Que tipo de amor é puro? Que tipo de amor nos enfraquece? Que tipo de amor nos fortalece? Que tipo de amor apenas nos oferece um segundo de felicidade? Que tipo de amor traz felicidade duradoura? E que tipo de amor nos permite dar felicidade aos outros de uma forma incondicional? Depois de determinarem o caminho, devem continuar a praticá-lo. Não se preocupem se de início tropeçarem. Praticar o Dhamma para dar sentido à vida não é assim tão fácil, mas também não é impossível. No fim, espero que tenham de admitir, sem qualquer dúvida, que as dificuldades valeram a pena. De facto, valeria a pena mesmo que fosse ainda mais difícil.