Existe um predador no interior de todos nós. Ele não existe para predar outras pessoas, mas para caçar a nós mesmos, devorando nosso discernimento, afastando a sabedoria. Foi criado a partir de nossos hábitos e padrões de comportamento insalubres, de nossas vaidades e egoísmos, e se alimenta de nossa energia mental, emocional e espiritual. Como todo predador, ele não age aleatoriamente e sem estratégia; fica à espreita e somente nos domina quando estimulado pelas circunstâncias, emoções e pensamentos que excitem sua ira. E nesta hora, como afirma Thich Nhat Hanh, o grande mestre budista da tradição Tiep Hien do zen vietnamita, fazemos coisas que não queremos fazer, dizemos coisas que não queremos dizer, pensamos coisas que não gostamos de pensar. Magoamos a nós mesmos e a outros, incapazes de agir com consciência plena. Esta é a Hora do Lobo, o momento em que caímos na mais lamentável cadeia de ações inconscientes e ignorantes, fundamentadas nos vícios de atitude que desenvolvemos ao longo de nossa vida. E essa triste queda devora nosso discernimento e percepção, e nos nega a sabedoria.
Quando a existência nos apresenta seus desafios, tensões e decisões, reagimos conforme ditam nossos pontos de vista. Estas opiniões nem sempre se fundamentam em uma base consciencial correta e saudável, mas será sempre através delas que iremos agir. E o que move esta energia de ação? É o nosso ímpeto, nosso vigor, nossa convicção pessoal. A crença de que estamos sempre corretos.
E o que nos faz tão certos assim? São os nossos hábitos condicionados, os padrões de comportamento e idealização que fundamentam nossa personalidade; estes são os reais fatores que irão estimular a convicção de que estamos com a razão. O tempo passa, e cada vez mais mergulhamos em um universo de comportamentos habituais derivados daquilo que definimos como “certo” e “errado” ao longo das experiências pelas quais passamos. Mais do que isso, existem as aprendizagens, ensinamentos e vivências que irão moldar nossa personalidade e forjar o conteúdo de nossa atitude diante dos “certos” e “errados”, e é justamente no ambiente de nosso caráter que o predador nasce e se instala.
Todos nós, para viver com um mínimo de coerência, fundamentamos nossos atos e pensamentos em nossa maneira de compreender os fatos. Mas para compreender bem os fatos (ou para compreender os fatos como eles são e não como queremos que seja), precisaríamos ter uma compreensão anterior e mais primordial, mais anímica: a compreensão de quem somos. Saber compreender quem nós somos não é fácil. Ou melhor, esta compreensão raramente é feita de forma consciente. Em geral temos uma compreensão artificial de quem somos, e quase todos nós resistimos muito em contemplar atentamente as reais cores de nossa alma. Preferimos fingir que já sabemos de tudo, ou que somos suficientemente maduros, e relegamos ao nível menos importante qualquer atitude de reflexão profunda sobre o nosso ser. Isso é uma coisa dos filósofos e intelectuais, ou uma necessidade apenas daqueles mentalmente desequilibrados – eis algumas desculpas mais comuns. Criamos escudos, couraças, desenvolvemos resistências e caímos em muitas armadilhas…
O fato é que na vida vivemos sob a ditadura das paixões. Sei que muitas pessoas interpretam o termo como representativo do vigor, dos aspectos mais alegres da existência. A paixão seria uma palavra romântica para o exercício pleno das emoções, e a única forma através da qual podemos sentir que estamos vivos. “Quero viver com paixão!”, é o que dizemos. Mas a paixão é um fator emocional que disfarça elementos muito pouco saudáveis, na verdade: a raiva, a ansiedade, a impulsividade e precipitação, e outros mais. E, bem, a paixão na verdade não abriga nenhum amor, nenhuma alegria de viver, em si mesma. Os processos passionais são sempre desgastantes, e em algum momento este desgaste se tornará evidente, não há como escapar disso. Festas frenéticas, viagens apressadas, muitas atividades cotidianas, consumo exagerado, relacionamentos superficiais intensos ou afetos racionalizados em um sem-número de projeções e carências, e um constante risco de agir com ímpeto agressivo (quase sempre disfarçada em “força de personalidade”) diante da vida: estes são fatores comuns que ocorrem naqueles que vivem passionalmente. E os que vivem desta forma não são poucos.
O que faz uma pessoa desejar devorar a vida? A fome de prazer. Todos nós queremos viver bem, em contentamento e felicidade. Mas o viver bem e a felicidade são, para nosso Eu, uma medida daquilo que nós queremos que a vida seja e não o que a vida é; à medida que o tempo segue seu passo, e frustrações ocorrem em nossas vidas, transmutamos o conceito de felicidade para a idéia de prazer, de usufruto, pois somente assim podemos alcançar o gôzo de nossos desejos. Esquecemos de descobrir qual é a real felicidade, e dedicamos toda a nossa energia em construir uma personalidade que busca de alguma forma a indulgência de suas fantasias e anseios.
O exercício das paixões através das fantasias dos sentidos parece mais fácil do que a conquista da felicidade através do equilíbrio da consciência. Além disso, quem afinal compreende o sentido da vida? Quem realmente pode se valer do inefável sentimento de contentamento? Mais valia tem as excitações imediatas, a luta para conquistar mais beleza física, mais domínio, mais poder, mais dinheiro e fama, mais intelectualidade, mais corroboração de nossos pontos de vista, enfim. Em meio a este processo, desenvolvemos hábitos arraigados em ignorâncias e desconhecimentos, e consolidamos muitos comportamentos insalubres em nós mesmos.
Segundo a psicologia budista, todos os seres humanos (na verdade todos os seres vivos compartilham a mesma estrutura, mas com características distintas por força da natureza de cada espécie) possuem um vínculo perceptivo com aquilo que é chamado de Alaya Vijnana, ou o “armazém de concepções”. Trata-se da fonte básica onde todas as experiências mentais possíveis estão armazenadas. Ali se encontram os pensamentos, sentimentos, sensações, formações mentais e a própria consciência. Neste “armazém”, nesta fonte, bebem nossa percepção e discernimento. E para ser formada, nossa personalidade precisa buscar ali suas características. O Alaya Vijnana é o potencial humano de todas as formas de ações mentais possíveis, todas as emoções e sentimentos alcançáveis, todas as estruturas de pensamentos realizáveis, sejam saudáveis ou insalubres.
O filtro deste fluxo tão grande de potencialidades perceptivas será a Plena Consciência, entendendo-se este termo como o fenômeno que gerencia e aglutina todas as percepções que passam do limbo potencial do Alaya Vijnana para o fluxo mental intenso do Eu. Quando perdemos o contato com nossa liberdade interior, criamos uma prisão ilusória para nossas ideias e opiniões e a energia de consciência torna-se anuviada pelos padrões de percepção incorretos e distraídos, criando em nossa personalidade hábitos, vícios de comportamento que são muito perigosos e prejudiciais. Todo este processo de anuviamento e desvio consciencial provoca um recrudescimento de nossa ideia de mundo, e fomenta a ilusão de que o mundo é o que nós pensamos que seja e não o que ele é. Assim, surge a doença do Egoísmo. Sendo egoístas, também começamos a cair na rede dos exageros passionais.
O predador nasce neste momento. Ele é o agente das nossas atitudes insalubres, que nos faz sentir menores diante da vida. Ele habita nossos corações e mentes, esperando o momento de nos dominar. E quando nos defrontamos com um desafio, um gesto, uma palavra ou uma ideia que de alguma forma estimule os hábitos arraigados em nossa mente, o predador ataca nossa percepção com uma fúria e velocidade terríveis. Ele abocanha nosso coração por dentro, e então sentimentos e ações dolorosos saem do universo potencial do Alaya Vijnana e afloram em nossa personalidade – fazendo surgir o ódio ou o rancor, a vaidade ou o orgulho, a teimosia ou o fanatismo, a crueldade ou a ambição, o medo ou a depressão, corrompendo nossa alma e devorando nossa energia. Neste momento aflora em nosso comportamento o Predador, fazendo-nos agir com impaciência, ciúme, vaidade e tudo o mais que sustenta nossa incapacidade de perceber adequadamente o mundo.
O predador parece muito poderoso. Ele é tão eficiente que, quase sempre, não percebemos sua aproximação e seu ataque, e apenas descobrimos que ele mais uma vez devorou nosso discernimento correto quando vemos os rastros do estrago, da mágoa ou do sofrimento que causamos em nós mesmos e nas pessoas à nossa volta. Mas às vezes, nem mesmo percebemos isso. Muitas pessoas tornam-se incapazes de perceber até mesmo o mal que nos faz os nossos hábitos de comportamento não-saudáveis, nossa ilusão, nossa loucura perceptiva. E vivemos assim, presas dos sentimentos insalubres, completamente auto-iludidos, agindo sem compreensão de quem somos e do que estamos fazendo.
Mas o predador não é todo-poderoso. De fato, ele depende de estímulos, como já disse, para sair de sua toca nos resquícios de nossa mente alaya. Além disso – o mais importante –, ele precisa de alimento para existir. E nós o alimentamos com a falta de esforço na prática de maior atenção, de mais reflexão e investigação meditativa de nós mesmos. Nós alimentamos nosso lobo interior quando deixamos de ouvir mais as pessoas, quando criamos uma autoindulgência tão grande que é capaz de justificar até mesmos as nossas ações mais mesquinhas, quando não sabemos calar e evitar o confronto, quando somos tão arrogantes que consideramos nossas opiniões o centro de tudo que é correto.
Contudo, se tivermos a coragem de, todos os dias, deixar de alimentar mais um pouquinho o Lobo, evitando (por exemplo) sustentar nossas opiniões inflexivelmente, agir com egoísmo e arrogância diante dos fatos, criar inúmeras pequenas mentiras para justificar nossos desejos e fantasias; se enfim soubermos estimular a humildade de analisar o que estamos fazendo, pensando e dizendo, e aprendermos a arte da descoberta do que podemos deixar de fazer para diminuir o sofrimento de todos à nossa volta, evitando os hábitos e palavras agressivos, orgulhosos ou injustos, então este predador ficará cada dia um pouco mais fraco. Cada vez mais ele deixará de saltar de sua espreita e nos assaltar com sua fúria ignorante.
Liberte-se de seu predador. Observe meios de prática que podem desestimular os hábitos arraigados em você, e que são tão prejudiciais. E, por favor, abandone o vício de apenas procurar o predador nos outros; cada um de nós tem seu caminho, e não nos cabe a injustiça de sustentar nossos argumentos acusando a doença de comportamento alheia. Saiba atingir o correto equilíbrio entre o reconhecimento do predador alheio e o melhor meio de se defender dele. E a melhor forma de nos defender do lobo que habita os corações dos nossos semelhantes é ter a coragem de apaziguar o nosso próprio lobo interior. Este é o segredo.
Dentre todos os aspectos potencialmente estimuladores de sua mente, saiba buscar aqueles que são capazes de curar as suas feridas emocionais e psicológicas. Saiba praticar a paz. Mesmo diante dos seus medos e de suas frustrações, apesar dos momentos de solidão e tristeza, saiba que sua alma pode muito mais do que viver pobremente dominada por orgulhos, ódios, rancores e fracassos. Ela pode viver com contentamento e força, sem jamais precisar cair nos vícios imaturos que porventura possam ter se acumulado com o tempo em seu caráter. Podemos usar as maravilhas do mundo para enfrentar nossos medos.
Somos muito mais do que presas de um predador. Podemos muito mais do que apenas agir com ignorância e intolerância. Podemos ser livres, serenos e fortes ao mesmo tempo. A vida é um sonho que pode ser vivido sem pesadelos. Acredite nisso, e confie: não somos escravos de nossas paixões. O predador pode ser superado, ele pode ser derrotado. Basta termos a coragem de viver saboreando as belezas da vida com uma mente simples e dedicada, e não devorando com paixão e impulsividade a nossa própria liberdade…